Eu tenho trinta e cinco vernizes,
mas eu quero mais, eu tenho dezanove pares de calças e calções, mas eu quero
mais, eu tenho seis pares de leggins mas eu quero mais, eu tenho quatro casacos
de inverno, mas eu quero mais, eu tenho quatro computadores em casa, mas eu
quero mais, eu tenho um guarda-roupa a explodir, mas nunca é suficiente, eu
tenho uma cama enorme, mas não é suficientemente espaçosa, tenho uma
secretária, mas não me dá espaço suficiente para trabalhar, então eu tenho uma
garagem enorme, mas não cabem os meus materiais, eu tenho um ipod, mas não tem
memória suficiente, eu tenho um par de galochas, mas são demasiado vulgares, eu
tenho sete pares de botas, mas umas são demasiado frias, outras demasiado
duras, outras demasiado quentes, eu tenho quatro malas diferentes, mas sabe
sempre bem mais uma, eu tenho uma infinidade de brincos, mas mais uns não fazem
mal, eu tenho pulseiras, relogios, fios e colares, mas nunca chegam, eu tenho oito
vestidos, mas já foram usados demais, eu tenho três televisões em casa, mas não
são plasmas (…).
Tenho donuts, bolos, bolachas
para quando tenho desejos, e café da máquina para quando tenho sono, mas se não
tiver café da maquina tenho café de pacote, ou se me apetecer um galão tenho
café com cereais, mas se não houver nada disto tenho sempre três cafés a porta
de casa para ir beber. Eu tenho comida na mesa sempre que quero, e uma mãe que
a faz por mim, mas se não estiver a mãe está a avó (…).
Mas isto sou eu, a pobre coitada da classe média. Nada humilde, muito
gananciosa. Eu e mais de metade da humanidade.. Mas e se fossemos pobres, e se vivessemos em
África?
Seria algo tipo:
- Vivo num campo de refugiados, é porreiro, alimentam-me, durmo numa
tenda de tecido, até se está bem, tenho um irmão que perdeu a perna, pelo menos
sobreviveu, está aqui comigo, tenho uma mãe que está doente, mas viveu tempo
suficiente para ciudar de mim, tenho sede.. mas não há água, tenho fome, mas
aqui como mais do que antigamente, estou sempre a mudar de sitio, com o campo,
não faz mal, pode ser que seja melhor.
Será que sou assim tão pobre coitada?
Bem se o sou, o que são estes meninos? Que sofrem todos os dias mas ainda assim
arranjam maneira de no fim do dia rasgar um sorriso e desejar boa noite? Onde
arranjam eles a força ao verem familias inteiras partirem, para continuarem o
dia que eu não arranjo quando não sei o que vestir, onde arranjam eles força
para não comerem durante dias que eu não arranjo quando, apesar da dispensa
cheia não sei o que comer?
Joana Cancelinha Pereira
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